Um sopro de vida

Enquanto crianças e jovens achávamos que o tempo não passava. Os dias eram lentos e as ocupações, depois da jornada de trabalho, eram rotineiras, ou quase inexistentes.

Nas aldeias, nos longos dias de Inverno, frios, chuvosos, intermináveis, a companhia ao serão era a lareira, a divisão mais confortável da casa e o centro operacional da família. Os pais, irmãos e os avôs, para quem os tivesse, contavam e recontavam histórias da família, do seu tempo, ao pormenor, viajávamos pela genealogia familiar, ao pormenor. Conhecia-se a família, do lado materno e paterno, pela boca dos pais e avós.

Muitos familiares viviam longe de nós, estavam na tropa, ou eram emigrantes, mas recorríamos a eles, sempre que houvesse alguma foto ou carta que deles viesse. Histórias que, de tantas vezes contadas, acabavam por se impregnar na memória, disponível, e ficaram para sempre.

Depois, vinham os assuntos mais badalados, do lugar, ou de terras vizinhas e que, nem a todos eram contados, porque nem todos tinham idade para os ouvirem. Ou das festas e romarias, como a senhora da Peneda, as Feiras Novas, os Santos, em Cerdal. Estes últimos eram vividos ao pormenor.

Falava-se da guerra nas ex-colónias, da guerra civil de Espanha, do contrabando para a Galiza, da pesca no rio Minho e da vida das Cobradas da segunda – guerra Mundial, temas que muito tiveram a ver com a economia de muitas famílias, e que muito diziam a muitos que arriscaram a vida em noites de contrabando.

Poucas casas possuíam um aparelho de rádio e mesmo assim as notícias estavam mais que censuradas. A televisão chegou tarde e era tão cara que tardou em se instalar.

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As mulheres tinham sempre ocupação garantida. Elas eram o motor da casa. Numa sociedade extremamente machista, e analfabeta, a mulher era o bombo da festa, de tudo e para tudo.

Desde o levantar da mesa, e de arrumar a cozinha, ou verificar a roupa que tinha apanhado, de verificar qual o seu estado para proceder a remendos mais ou menos profundos, sob a luz de candeeiros a petróleo, ou electricidade, com lâmpadas fraquinhas, era um luxo, para quem a tivesse. E, obviamente, o cuidado com os filhos.

Se ainda sobrasse tempo, havia lã, ou linho, ou estopa, para dobar e fiar e meias para fazer.

Unidos por este sentimento de proximidade e de família, e a ouvir os mais velhos a discorrer sobre assuntos, muito longe da nossa alçada, a união familiar nutria e desenvolvia-se.

A vida das pessoas, das freguesias, das vilas e cidades, corria devagarinho, por esse tempo.

Para traz tinham ficado as colheitas, e era com esses parcos produtos que teriam de se governar todo o ano. Mais adiante, quem pudesse, mataria um porco que teria que durar até ao Inverno seguinte. Era uma gestão criteriosa e muito rigorosa.

De longe da Europa ou da América do Norte vinham relatos de outras vidas, trazidas pelos nossos emigrantes. Era como conto de fadas, aquilo que, da boca deles, se ouvia e que achávamos jamais aqui chegarem. Por essas terras, o progresso tinha-se antecipado. E muito.

Por aqui, a vida decorria devagarinho, sem inquietações de maior, a não ser aquelas que incomodavam as vidinhas das pessoas.

Para traz tinham ficado meses de muito e duro trabalho quase todo no campo. Desde as sementeiras do milho, alguma aveia, algum trigo, batatas e muito milho, ou ao tratamento das uvas até perto das vindimas.

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Juntas de bois ou de vacas, rasgavam a terra em longas e extenuantes manhãs de muito trabalho e pouca comida. Aos poucos os tractores começaram a impor o seu poderio e eficácia e todos passaram a ter uma vida um pouco melhor: os animais e as pessoas.

Eis que chegava o São Miguel e a fartura, ou não, das colheitas, mas cujo espírito era de alegria e muita partilha.

O milho, cultura maioritária e muito braçal, vinha após as vindimas, ás vezes ao mesmo tempo.

Mas havia algo de muito bom, único e que já não existe. A entre-ajuda, o trabalho realizado em comunidade entre vizinhos e pessoas da freguesia.

E havia as inesquecíveis desfolhadas em que, em poucas horas nocturnas, eram desfolhados vários campos de milho. A união tem estes resultados simples e práticos.

O milho era colocado em bardeiros ao longo das propriedades e, chegado o momento após o jantar, toda a gente desfolhava, desde o mais pequeno, aos jovens, até aos avós.

Iluminados pelo luar, caso houvesse, ou por candeeiros de rega. Fechava-se um círculo à volta dos bardeiros. Ritmadamente, as espigas caíam em cestos, feitos de fina e entrelaçada madeira castanho e salgueiro, e levados ás costas pelos rapazes para o interior de carros de bois.

A aldeia que, não fosse a desfolhada, estaria em silencio, via-se buliçosa e alegre. As jovens e os menos jovens, todos aqueles e aquelas que gostavam de cantar, faziam-no com espontânea alegria, espalhados pelos campos, cantando canções do nosso folclore e que os pais e avôs, já as havia cantado.

E havia as espigas de milho-rei. De cor vermelha escura, elas faziam a delícia de quem as encontra-se, porque dava direito a um abraço à jovem, perante o aplauso dos demais.

Era, como que, um aquecer de motores para o improvisado bailarico que seria o culminar da desfolhada, ao som de uma concertina e pouco mais durava que uma hora.

Por muito que viva jamais esquecerei estes sãos momentos de pura confraternização e alegria verdadeira.

De lá até aqui, foi um sopro de vida.

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2 comentários

  1. Isso é maravilhosamente descrito e evoca uma época passada cheia de tradições e fortes valores familiares. As lembranças desses momentos de convívio e simplicidade são preciosas. É importante lembrar de onde viemos e das experiências que moldaram nossas vidas. Obrigado por compartilhar essas lembranças nostálgicas.

  2. Caro Louis Miguel é de facto um duplo prazer escrever sobre memórias passadas. Elas são as fundações daquilo que somos hoje.
    Muito obrigado por me leres.
    Forte abraço

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