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Uma viagem intensa ao redor da escrita em ‘Olhos bruxos’ de Eliezer Moreira

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Alexandra Vieira de Almeida

Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ) *

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No romance de Eliezer Moreira, Olhos bruxos (Penalux, 2019), uma homenagem a Machado de Assis e ao Rio de Janeiro, encontramos a presença de dois narradores, o que torna a narrativa mais densa e contundente ao abrigar inúmeras possibilidades de leitura por seu teor simbólico e original.

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O narrador principal que se encontra no lugar de uma narrativa policial e detetivesca nos aponta os meandros da investigação de um furto na urna da Academia Brasileira de Letras, o pincenê de Machado de Assis. Essa narrativa central tem um teor mais realista numa linguagem mais clara e objetiva. Por outro lado, temos o narrador dos datiloescritos intitulados “Papéis avulsos” num total de 25, o título desses escritos como referência a um dos livros de Machado de Assis nos remete à junção do real e do ficcional. Numa linguagem mais ensaística, teórica e, ao mesmo tempo simbólica, temos nesses escritos relatos do ladrão do pincenê, um livreiro e bibliófilo obcecado por Machado de Assis. 

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Além dos 25 datiloescritos, temos 6 cartas anônimas para a Academia, assinadas com nomes das personagens de Machado de Assis e, na última carta, com o próprio nome do escritor. Esse processo de reinvenção de Machado de Assis não se apresenta como cópia servil do modelo machadiano. Ao contrário, a originalidade e a genialidade de Eliezer Moreira ultrapassam as palavras “imitação” e “simulacro”, fazendo de sua obra algo diverso e criativo que se utilizando da intertextualidade provoca um processo de antropofagia literária, ao reunir o modelo e a criação diferenciada, dando grande poder de efabulação no seu livro excepcional em todos seus contrastes e diferenças. O livro é dividido em duas partes: “Olhos bruxos” e “A invenção do destino”. Nessas duas partes, encontramos os ecos de Machado de Assis, como, por exemplo, as digressões analíticas, a conversa com o leitor e o processo de citações com relação a nomes importantes do passado. Mas isso não quer dizer subserviência ao estilo do escritor cotejado. A obra aqui em questão de Eliezer é de grande pluralismo e riqueza estilística, reunindo dois estilos de narrativa que acrescentam novos elementos ao diálogo com Machado. A sua obra é um diálogo aberto com o escritor homenageado.

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Nas cartas anônimas para a Academia Brasileira de Letras, o narrador justifica o motivo pelo qual furtou os óculos de Machado. Na verdade, ele queria os olhos do escritor para poder ver como Machado e escrever como ele escreveu. E, num processo de autocrítica, vê que não conseguiu seu intento, devolvendo o pincenê do autor. Nesse meio do caminho, o narrador das cartas tem dois pincenês, o original e a réplica. Nesse sentido, encontramos aqui a ironia de Eliezer Moreira, que não precisa de cópias, mas apenas de seu processo inventivo que é magistral. Eliezer brinca com as personagens  machadianas, reunindo numa só esfera, o que é real e ficcional.  As personagens machadianas adentram na narrativa maior, assim, como na narrativa do ladrão do pincenê, os papéis avulsos e as cartas, as personagens do plano do real da primeira narrativa são incluídas, fazendo o leitor pensar nas fronteiras tênues entre o que é a realidade e o que é inventivo. O nome do jornalista que escreve a crônica no jornal que desvenda o perfil do ladrão tem o nome parecido com o próprio escritor Machado de Assis: “…um jornal do Rio publicou a crônica habitual de Joaquim de Andrade Maria, por sinal, quase um xará do autor espoliado, cujo nome completo, como se sabe, é Joaquim Maria Machado de Assis”

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Outros personagens aparecem na sua obra, como o jornalista Suetônio, que passa a investigar, por conta própria, o furto. A museóloga Manuela, que será crucial para o desvendamento do mistério. O pincenê tem um significado simbólico, que passa do concreto para o abstrato, pois o objeto adquire um significado mais amplo e que é o motivo para o furto. Ou seja, o motivo do furto não é material, mas sim estético. Outro componente essencial na obra de Eliezer é a questão da identidade do ladrão. Ele adquire várias personalidades e máscaras, escondendo sua verdadeira persona, que é descoberta no final do livro. Isso nos faz lembrar da frase de Mário de Andrade: “Eu sou trezentos…” Nesse sentido, podemos nos reportar ao processo heteronômico de Fernando Pessoa que se inventava a si mesmo a partir de outros nomes. Eliezer Moreira reinventa seu narrador-personagem ladrão que adquire múltiplas faces em nome da literatura. Ele é invadido pela força do literário, se recriando a todo instante.

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A narrativa mais realista é narrada em terceira pessoa, enquanto nos papéis avulsos e nas cartas para a academia, temos uma narração em primeira pessoa. Só que, estrategicamente, Eliezer Moreira muda o foco da primeira narrativa para a primeira pessoa, revelando os vários olhares e enfoques que seu romance apresenta. Nos papéis avulsos temos reflexões sobre a literatura e a leitura. A sua leitura de mundo não é impressionista, mas bem fundamentada teoricamente, apesar do larápio negar tal afirmação. A sua experiência de leitura é vertiginosa. Encontramos metáforas na expressão de sua visão sobre o seu papel como leitor. Além disso, temos intersecções entre Quixote/Borba, Cervantes/Machado, revelando-nos suas relações a partir do processo literário. O seu estilo de escrita nos papéis avulsos e nas cartas não é ágil, há um prolongamento, uma extensão para além das páginas, pois nos faz refletir sobre elas. A narrativa principal é mais célere e nos aponta para os desvendamentos do crime. Na verdade, Eliezer Moreira, de forma grandiosa, faz um trabalho ensaístico sobre a obra de Machado de Assis, aliando a crítica à contação de uma excelente história. Além de um estudo de Machado, encontramos referências a outros escritores, como Malraux, Camus etc. Cita ainda os ladrões célebres da literatura, como Jean Genet e François Villon, unindo, assim, os ladrões reais aos imaginários. A grande proeza de Eliezer Moreira é reunir num mesmo romance um livro de investigação policial e ensaio ao mesmo tempo, mesclando o policial e o literário, a narração de uma grande história à literariedade. 

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A referência ao escritor Joaquim Manuel de Macedo também se apresenta aqui. Podemos nos lembrar de sua obra A luneta mágica, em que o personagem do livro vê o mundo com outros olhos a partir dos óculos que ele utiliza. Ao percorrer a cidade do Rio de Janeiro, o ladrão relata outra visão sobre as ruas pelas quais ele passa. Apesar da sujeira, do trânsito e mendicância, a partir do pincenê de Machado de Assis, vê tudo com uma visão onírica, a “mesma luz de sonho e deslumbramento”. Ele é transportado para outro tempo, nas ruas dos livros de Machado de Assis. Ao tirar as lentes, o “cenário de abjeção ressurgiu violentamente.” Suetônio observa o autor do furto, como amante do Bruxo e também amante da cidade do Rio de Janeiro. No Dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, temos um dos significados da palavra “olho”: “O olho, órgão da percepção visual, é, de modo natural e quase universal, o símbolo da percepção intelectual”.

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Portanto, nessa obra magnífica de Eliezer Moreira, encontramos dois estilos literários e distintos que se mesclam, formando, assim, uma narrativa cativante, que enreda o leitor com grande poder literário. O mistério investigativo é desvendado. As peças de seu livro se encaixam perfeitamente como num puzzle. Os “olhos bruxos” nos revelam os diferentes pontos de vista que sua obra apresenta. Por um lado, uma trama detetivesca e envolvente e, por outro, um trabalho de intensa dose literária, que analisa o mundo que nos circunda, com suas dores e prazeres. Os olhares perfeitos sobre o que é o real e o inventivo são acionados, nos levando por uma viagem intensa ao redor da escrita.

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Alexandra Vieira de Almeida é poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é professora da Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de ensino superior a distância no Consórcio UAB-CEDERJ (UFF). Tem sete livros de poesia, sendo o mais recente “O pássaro solitário” (Penalux, 2020). Tem poemas vertidos para vários idiomas.

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