CRÓNICAS DA MINHA RUA: Os miados da D. Maria

Paula Teixeira de Queiroz

Escritora

Não é raro acordar com os miados da minha vizinha mais visível e ouvível! Trata-se de uma senhora idosa mas manhosa e perspicaz como uma gata velha! Mal sente uma presença física corre à janela despudoradamente. É a tal que põe o cuecão, os sacos plásticos e os trapos a secar à janela! Apesar disso gosto dela.

Não sei explicar, é uma relação feita de contrariedades e conforto: já a vejo há mais de 20 anos e é sempre muito bem educada e prestável embora tenha a certeza de que me reprove! E pergunta pelos “meninos”, o que me enternece quando penso nos matulões que são. E trata-me com delicadeza e deferência o que também me sabe bem, sobretudo quando sujeita aos “destemperos” dos “meninos”.

 

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Gosto de senti-la, mesmo que mie logo de manhã, soltando uns suspiros profundos que lhe saem das goelas e vão directos aos meus ouvidos ainda emaranhados de palavras escritas mentalmente. Sim, no pré acordar faço uns textos extraordinários que duram o tempo exacto até despertar completamente. Oh, que obras de arte perfeitas se perdem nesse lapso de tempo, afirma aquela que os sonha ou escreve mentalmente mas que nunca os materializa…

 

A D. Maria encontra-se perto dos 90 e está fresca que nem uma alface: vai à piscina, à praia com a junta de freguesia, cozinha comida tradicional portuguesa e deixa escapar uns odores pela janela que me dão vómitos… mas sim, gosto dela! O marido, o senhor Aníbal, que foi o merceeiro da esquina durante 70 anos, tem uns orgulhosos e saudáveis 96, lava as persianas encavalitado num escadote, inventa engenhocas para apanhar molas, os trapos e cuecão acima mencionados, quando caem para o meu território sem me querer incomodar, ouve as notícias na radio mau grado a sua extrema surdez, o seu calcanhar de Aquiles: ó Aníbal, ó Aníbal, grita amorosamente a D. Maria, entre o ralhar e o arrulhar. Sempre juntos, ampara aqui, ampara ali, seria quase perfeito se não fosse este cheiro a entrar-me pelo pátio e a ferir as minhas narinas sensíveis pelo menos a esta hora da manhã e mais amigas de saladas e comida saudável! Ai o refogado, D. Maria, que me vai obrigar a fechar a porta e perder o ar fresco e chilreado da manhã!

 

Não fora o filho imbecil que vive com eles e até perdoava os cheiros, o cuecão e os trapos à janela, a cusquice, o terço rezado às escuras (os sustos que apanho quando me julgo sozinha no pátio e ouço um movimento em falso), mas o filho, senhores… O que faz um homem de quase sessenta anos, solteiro, boçal, ordinário, que berra e uiva quando vê o Sporting perder, que se metia com a minha empregada, uma moldava linda, mais parecia uma princesa russa da velha guarda, que o ameaçava com a vassoura, enfiado na casa de um casal tão respeitado e educado, que vai à igreja e à praia com a junta de freguesia? Sempre desconfiei que está ali para ficar com a casa de porteira arrendada quando os pais se finarem!

E tremo quando chegar o dia!

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