Pescadores e camponeses habitavam aquelas terras que hoje a água cobre, o igarapé do Tarumã.
Perto dali corria o rio, lerdo e largo. Corria sempre e nele o povo pescava. Veio um tempo, porém em que os homens, entrando de barco pelo rio, não voltaram quase nunca. Suas canoas, abandonadas, muitas vezes boiavam. Boiavam e vinham encalhar no raso. Às vezes apenas os restos delas eram encontrados – mas às vezes nem isso: tantos homens foram pescar e nova notícia não se teve deles ou de seus barcos. Os pescadores que sobreviviam remavam de volta com rede e samburá vazios. Era a mãe-d’água que assim queria. Diziam que ela, com sua voz, cantando com maravilha, tinha atraído essas canoas mais e mais rio adentro. Contavam que esses barcos, arrastados sem controle, aí viravam ou afundavam. Deu-se que ninguém se arriscou a pescar de novo e dormiam com fome.
O milho cozido nem chegava para todos. Frutas, se houvesse, não bastavam. Meninos adoentados, mulheres viúvas e magras, anciãos enfraquecidos. Dentro os jovens pescadores, um deles houve que mais se atormentou em ver toda a gente definhar por medo e fome. Sem dizer nada a ninguém, montou numa canoa, rasgou caminho no rio e, bem lá dentro, lançou a rede. Em sua cintura, a peixeira nova rebrilhava, num duro duelo com a luz do Sol. O moço desafiou-se a só voltar para a aldeia com o samburá pesado de peixes. Era manhã e ali ele fincou-se. À tardinha puxou a rede, ela veio vazia tal e qual antes. Lançou-a de volta n’água, apesar do céu já pesar com sinais da noite.
Manhã seguinte, nada de novo. Somente uns peixes miúdos, umas poucas piabas que ele próprio almoçaria para suportar maior espera. Repetiu o velho gesto de arremessar a rede no rio. Foram três dias seguidos e iguais, sem a rede obedecer aos desejos do pescador. E naquela noite, a Lua apareceu inchada no céu. Ele jogou a rede, adormeceu, só lhe sobrava aguardar o outro dia. Acontece que, em meio à madrugada, seu sonho foi interrompido – uma voz de mulher cantava baixinho, sibilava longe em seu ouvido e, fundida ao ritmo do rio movendo, vinha, depois ia.
Um som sereno que, quase sumindo, ora ressurgia manso, aumentava um tanto e de pouco em pouco já soava perto. O rapaz assustou-se e de um sobressalto apanhou o facão.
– Quem está aí?
Seu grito vibrou sem resposta no breu. Só então ele se deu conta: na ponta de uma pedra, a moça morena, sua cabeleira desamarrada descendo sobre as costas – aquela mulher é que cantava. Era uma moça bonita. Um corpo que parecia irradiar dentro do escuro. Destoava da penumbra. A Lua tremeluzia no rio tranquilo. A moça apenas sorriu e deu um mergulho. Banhou-se uns segundos para retornar ao alto da rocha. Do barco, o rapaz a acompanhava gesto a gesto. Primeiro ela nadou deslizando docemente entre as águas e agora seus passos sobre a pedra eram delicados. Foi quando ela cortou o silêncio:
– Não vou lhe fazer mal, pode guardar esta faca.
O pescador obedeceu, meteu a arma na bainha. A moça saltou na água, nadou para alcançar o barco e sentou-se sobre a proa. Aquela era a mãe-d’água. Raras vezes saia das grutas do fundo do rio, onde morava por anos. Na proa da canoa, explicou que vira a insistência do pescador em ter sua gente salva. E era por isso talvez que ela viera contar-lhe certas histórias. Todas as águas do universo – oceanos, rios e mares – moviam-se sob seu poder. Maremotos, enchentes, baixas d’água também, tudo sob sua vontade. No entanto, muito antes de ser mulher como ela ali era, a mãe-d’água tinha tido a forma de serpente sururucava. E, se controlava as águas, nada podia, porém, contra a sua própria fome, que era ainda fome de cobra.
– Por isso, quando estou esfomeada e necessito, roubo os pescadores desta região. – Ela calou-se um instante e fixou o olhar nos olhos deslumbrados dele, antes de tornar a falar. – Mas todo esse desejo firme me fez pensar em ter mais cuidado e em deixá-los em paz.
– Depois de tanta gente sacrificada!… Como é que posso acreditar nisso?
– Escute, em nome da Lua que rege meus humores, digo que vim até cá trazer o sossego. Quero que, a cada madrugada de Lua cheia, você me presenteie com toda a farinha de milho que sua aldeia preparar. Se eu comer dessa farinha, prometo, adormecerei até a outra Lua cheia. Em troca, todos vão poder pescar, vão ter peixe à vontade. Pouco mais tarde, ali mesmo os dois adormeceram.
Quando o pescador acordou, a Mãe-d’água já tinha ido embora e o Sol se mostrava inteiro, no centro do céu turquesa. Tudo correu como o combinado. Oito vezes o moço trouxe a farinha, cada vez em cada madrugada de lua cheia. Uararas, piraíbas, pirapucás, pirarucus – o povo então puxava as redes lotadas de peixes presos. A fartura imperava e festas se estendiam por dias: danças, cantorias, bebedeiras. Só na Lua o pescador tornou a escutar aquele canto de antes. A voz vinha do fundo do rio, distante, foi ficando forte. Ele debruçou-se contra a água, seu rosto espelhou-se ali; de lá saiu a moça. Ela sentou na rocha.
– O que venho pedir agora não é alimento. Me sinto só, quero alguém que queira morar comigo sob as águas. Na verdade… quero que você venha comigo.
O rapaz permaneceu calado.
– Vá à sua gente, diga que, quando surgir nova Lua cheia, esteja tecido um enorme lençol branco – o maior já visto nestas bandas. Diga também que todos quebrem e enterrem suas armas numa das margens do rio. De madrugada, com o lençol, cubra sozinho essas mesma margem. Aí sairei e você mergulhará comigo. Seu povo vai viver em calma até o fim dos tempos, vai ter sempre minha proteção.
– Mas eu não quero abandonar minha aldeia!- ele contestou.
– Você escolhe. – A mãe-d’água saltou logo da pedra, sumiu num mergulho. Somente com o amanhecer é que o pescador decidiu voltar para casa. Recontou então ao povo o novo pacto proposto – e desde logo o trato veio a ser comemorado. Fio a fio, durante dias, as mulheres teceram uma manta alva e imensa. Estirada, ela encobria a beira-rio com seu linho. Nesse tempo alguns homens, de casa em casa, recolhiam peixeiras, punhais, navalhas, tesouras, arpões. Outros, à borda do leito, cavavam uma cova larga, para sepultar definitivamente todas as armas. Só que o jovem pescador não engolia o dever de deixar para trás sua aldeia e viver, dali por diante, entre as grutas do fundo do rio. Portanto, achou por bem trair o planejado com a Mãe-d’água. Guardou consigo, escondida, sua peixeira. Na madrugada marcada para o encontro, levaria o facão na cintura: saber usá-lo seria sua proteção.
Chegada a Lua cheia, todas as armas foram quebradas e enterradas sob o areal, que o lençol estendido, por sua vez, escondia. O moço aguardou. A Mãe–d’Água viria: seu canto ressoou, de início longínquo, mais alto aos poucos. Logo ela apareceu entre as breves ondas e nadou até a beira. Com água já à altura dos joelhos, ela caminhou. Sobre toda a mata, a Lua era uma clareira. A moça se aproximava. O rapaz foi a seu encontro no longo tecido branco. Quando a moça pôs os pés na manta branca, da cintura dele a lâmina prateada do facão reluziu feito uma faísca contra os olhos dela. A mãe-d’água empalideceu. As águas se avolumaram, uma onda gigantesca, zangada, cresceu e desabou sobre o lugar. Uma enchente que atropelou a paisagem inteira: árvores, morros, bichos, casas, gente. Ali agora há o quieto igarapé do Tarumã.
Madrugadas em que a Lua é cheia, sobre a sepultura das armas, quem lá está vê a Mãe’ Água que canta e se banha – e a seu lado, um homem gemendo e soluçando muito.
Glossário Piaba: nome que se dá a diversas espécies de peixes fluviais muito pequenos. Piraíba: peixe pluvial, comum na Amazônia, que tem a cabeça e a boca muito grandes. É o maior peixe de couro do Brasil, chegando a medir 3m e a pesar mais de 150kg. Pirapucá: peixe fluvial, também conhecido como peixe cachorro, por ter dentes longos, pontudos e fortes e ser carnívoro. Pirarucu: também fluvial, é o maior peixe de escamas do Brasil. Chega a atingir até 2,5m de comprimento e 80kg de peso. Seu nome se deve a manchas vermelhas que tem pelo corpo. Samburá: cesto feito de cipó ou de taquara, bojudo e de boca estreita, usados pelos pescadores para guardar o fruto de sua pesca. Surucurana: também chamada de cobra-lisa ou cobra-d’ água, é uma cobra muito comum no Brasil, que vive sempre dentro da água, daí o seu nome. O seu corpo é brilhante e chega a ter 1m de comprimento. Alimenta-se de peixes pequenos, girinos, etc. Uarara: peixe da Amazônia, com até 1,25m de comprimento. A sua cabeça e a parte anterior do seu dorso são cobertos por uma couraça amarelada, e sua gordura costuma ser dada aos papagaios