Mrs. Collins: os Outros

Joana Cardoso

Arquitecta

Deste quarto bem pequenino – todo ele cama e janela – vejo a chuva que cai, ligeirinha, do céu cinzento-azulado. É uma sinfonia visual, ritmo aquoso pontuado pelos carros a rasgarem a vista do creme das fachadas e do castanho-ferrugem dos telhados.

 

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Por trás da árvore, cujas folhas recém-nascidas dão garra à rua ensombrada, vejo Mrs. Collins a passar a ferro. Ela tem as cortinas corridas e não suspeita que os meus olhos raio-X vêm o ferro turquesa a deslizar sobre os lençóis cor de malva, condizentes com a camisola de malha puída e com o papel de parede às florinhas. Num canto palra uma T.V., anunciando esfaqueamentos, subida de preços e cataclismos, tudo entremeado por reclames que prometem felicidade eterna e instantânea a quem adquirir os produtos anunciados. 

 

Vejo Mrs. Collins fungar, pousar o ferro e ir descansar no sofá. Pelo caminho, leva um pacote de batatas fritas, desses pacotes pequeninos que vêm às dúzias num invólucro gigante, promovendo o consumo de porções modestas e o aumento de plástico nos oceanos. Pega numa cópia do Daily Mail, pés em pantufas cor-de-rosa sobre a mesinha, e dá início à sua leitura favorita, regalando-se com crimes hediondos, celebridades caídas em desgraça, histórias do arco-da-velha, tudo temperado por uma dose bem apimentada de ódio ao inimigo comum, o Emigrante. 

 

Mrs. Collins abana a cabeça, tut tut, desaprovadora. Como é possível que deixem que cá chegue essa choldra vinda de países sem lei, desse resto de mundo selvagem, trazer para aqui os seus hábitos lamentáveis, causando a queda do sistema de saúde, terrorismo, gangs, o fim dos bons costumes. Mrs. Collins não gosta de mulheres pretas porque “têm uma atitude”, não gosta de indianos “porque não podia com aquela família que vivia na casa do lado”, não gosta de europeus porque “vêm tirar trabalho aos ingleses”. Cidadãos de outros países, britânicos de outras etnias, é tudo farinha do mesmo saco. Quando vai ao Centro de Saúde, embirra com o médico paquistanês e critica as mães cansadas que, na sala de espera, dão um berro com sotaque ao filho que se está a portar mal. “Gente assim não devia ter filhos. Chamar nomes feios às crianças, onde já se viu, deviam tirar-lhos, que há muito quem queira ter filhos para amar e não possa.”

 

Salpicos destes pensamentos vão-lhe inundando a mente enquanto lê o infame jornal. Morde as unhas brilhantes de gordura, sentindo o coração alvoroçado. Como é possível? O mundo está perdido. Uma familiar mistura de pânico e schadenfreude enchem-lhe a alma até estalar de nostalgia. Que saudades dos tempos em que se chamava Pamela Hudson, usava tranças e brincava com os outros meninos do bairro. Que saudades dos caramelos que o avô lhe trazia e das salsichas com puré da mãe. Que saudades de conhecer toda a gente que vivia na mesma rua, de crescer para ser jovem nos swinging sixties, de conhecer o Ronald, de se casarem, de comprarem aquela casinha que foi o melhor negócio da vida deles. Em segredo, muito em segredo, que saudades dos tempos em que, naquele bairro, eram todos ingleses brancos e falavam com um só sotaque.

 

Hoje em dia, graças à emigração e ao investimento estrangeiro, a sua modesta casinha passou a valer meio milhão – magro prémio de consolação! Arrepia-se de pensar o que teria de gastar a cada mês, se tivesse que arrendar. Teria que se mudar dali, isso era certo, e viver num andar sem alma, num sítio desconhecido. O que seria do seu rico jardim? Os amores perfeitos morreriam de desgosto, pela certa. Malditos estrangeiros.

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Enquanto a mente voa para longe dali, os olhos de Mrs. Collins pousam num outro jornal, desses gratuitos, cuja primeira página fala do escândalo Windrush. Também ela se indignou com o tratamento dado aos emigrantes das Caraíbas, a viver no Reino Unido há décadas, chegados quando o país precisava deles, e agora descartados, recusados tratamentos ao cancro, ameaçados com deportação. Sabia-lhe bem, indignar-se por eles. Provava que não era racista e era uma indignação confortável, muito diferente de quando ela se zangava com a falta de enfermeiros ou de camas do hospital. Essa é a indignação do medo.

 

Porque Mrs. Collins sente o medo primevo de quem está sozinho, num mundo diferente, regido por tecnologia que ela não percebe, conectado de maneiras que ela não vê, cheio de gente que ela não entende. 

– É gente a mais a vir, isto é apenas uma ilha! – Mrs. Collins repete o refrão  batido, mas sem significado. Mrs. Collins sente-se, ela própria, uma ilha num mar indecifrável.

 

A sua fragilidade atrapalha-me. Eu não devia estar ali a vê-la e muito menos a ler-lhe os pensamentos. Quem nunca teve medo do desconhecido que atire a primeira pedra, quem nunca se sentiu sozinho que atire duas ou três.

Fecho os olhos raio-X, ainda a tempo de ver Mrs. Collinas sorrir enquanto sonha com os tempos em que a Grã-Bretanha era um Império. 

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