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Mulheres são as que menos criam ou editam na Wikipédia em português

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A Wikipédia está a celebrar o seu 20º aniversário. Mas quem são os responsáveis pela criação e edição dos verbetes/artigos que lemos em língua portuguesa. Quantos são? Quem a gere? O que fazem da vida? Porque contribuem estes voluntários? Um estudo inédito, realizado na Universidade do Minho pelo CECS (Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade), responde a estas e outras perguntas.

 

Pouco ou nada se sabia sobre quem cria e edita artigos/verbetes numa das enciclopédias mais lidas no mundo, a Wikipédia. Pedro Rodrigues Costa, investigador social e especialista em redes digitais e colaborativas, partiu então para a investigação da Wikipédia em língua portuguesa, traçando o perfil dos seus editores. 

Para este investigador, “num tempo em que tanto se discute sobre fake news, pós-verdade e confiança na informação, estudar e perceber como funciona e quem alimenta esta rede colaborativa poderá dar pistas sobre como se instalam socialmente ‘verdades’”. Sendo produzida de modo voluntário, colaborativo e em diferentes idiomas, esta Fundação sem fins lucrativos que visa a difusão livre de conhecimento “merece uma investigação social e técnica atenta e pormenorizada, na medida em que se trata de uma das fontes de informação mais visitadas no mundo”. O investigador recorda que desde 2016 “a média mensal de acessos às páginas da Wikipédia em geral ronda os 400 milhões” e que cerca de “5 mil milhões de visualizações aos seus artigos/verbetes aconteceram entre setembro de 2019 e setembro de 2020, contabilizando todas as ‘Wikipédias’ nos seus diferentes idiomas”.

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De acordo com Pedro Rodrigues Costa, “é preciso clarificar, em primeiro lugar, que cada idioma possui uma Wikipédia diferente, e que esta é alimentada por editores voluntários, nativos ou simpatizantes, do respetivo idioma”. Além disso, “ao todo existem cerca de 59 milhões de verbetes/artigos publicados em 299 idiomas, e desses 59 milhões mais de um milhão foram criados em português, entre 2003 e 2020”. Só em setembro de 2020, “em Portugal foram visualizadas cerca de 29 milhões de páginas da Wikipédia em português, no Brasil cerca de 273 milhões, nos EUA cerca de 14 milhões e em Angola e Moçambique cerca de dois milhões de visualizações em cada, valor semelhante ao registado no Reino Unido e na Alemanha. Em geral, existiram aberturas de páginas de Wikipédia em português em quase todos os países do mapa mundo”, conclui o investigador.

 

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Investigador Pedro Rodrigues Costa

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Quem são os editores e criadores de artigos/verbetes da Wikipédia em português?                                                

 

De acordo com os primeiros resultados do estudo, que está ainda em fase de execução, o retrato do criador e editor dos verbetes da Wikipédia em língua portuguesa é traçado do seguinte modo:

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  • A 06 de fevereiro de 2021 estavam ativos, com pelo menos uma edição nos últimos 30 dias, 10819 editores. No entanto, até ao final do mês de janeiro de 2021, com cinco ou mais edições no último mês, estavam ativos 2817 editores. A média de editores com cinco ou mais edições mensais é, desde 2003 até 2020, de cerca de 1500.
  • Entre os criadores e editores, é importante destacar que nem todos têm a mesma função. Nos 2817 editores frequentes existe considerável distribuição de funções organizacionais: 71 são administradores, 4 são administradores de interface, 12 são burocratas, 3 são criadores de contas, 3 são supervisores, 713 são autorrevisores, 14 são eliminadores, 173 são reversores e 6 são verificadores de contas. Os restantes são criadores ou editores sem funções específicas atribuídas. 
  • Na esmagadora maioria, estes editores/criadores são do sexo masculino (84,6%).
  • Na grande maioria, são de nacionalidade brasileira e a editar no Brasil (70,4%), ouentão portugueses a editar em Portugal (23,9%). Os restantes 5,7% são de Moçambique, Angola, Galiza, EUA, Venezuela ou Alemanha. 
  • Na maioria dos casos estes editores/criadores têm idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos de idade (29,4%), ou entre os 25 e os 34 (27%) ou entre os 35 e os 44 anos (20,9%). Os mais jovens (com idades entre os 10 e os 17 anos) são 11%. No entanto, também existe uma percentagem considerável de indivíduos com idades entre os 50 e os 65 anos de idade (9,8%). A faixa etária que menos contribui é a que possui 65 ou mais anos (1,8%).

 

Para o investigador, “são preocupantes duas questões logo à partida: uma desproporção no género, em que a participação das mulheres é demasiado baixa (12,9%), e uma desproporção na nacionalidade dos editores, onde 94,3% são de nacionalidade brasileira e portuguesa”, o que faz salientar a ausência de editores dos restantes países de língua portuguesa.

Sobre o que fazem do ponto de vista profissional, o estudo conclui que cerca de 55 em cada 100 editores é ou licenciado (26,4%), ou possui um bacharelato (17,8%), ou possui um mestrado (11%). Com doutoramento ou pós-doutoramento, de forma combinada, são cerca de 9,2%. Ao nível do secundário são 19,6% e com o ensino profissional/técnico são 7,4%. Com o ensino preparatório são apenas 3,7%.

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Estes níveis de qualificação relacionam-se com as principais profissões anunciadas pelos criadores/editores que responderam ao inquérito: cerca de 24% são ainda estudantes, maioritariamente do ensino superior, 10,7% são professores, 13,3% estão atualmente desempregados, e depois existem jornalistas, gestores, historiadores, investigadores, engenheiros (mecânico, civil, de informática), escritores, revisores editoriais, tradutores, bibliotecários, geógrafos, informáticos, programadores, designers ou advogados. Ou seja, prevalecem formações técnicas ligadas, de algum modo, aos seus temas de edição.

Na maioria dos respondentes ao inquérito, “cerca de 60% faz edição ou criação de artigos há menos de 10 anos, sendo que quase um em cada quatro (23,3%) fá-lo há um ano ou menos. Os restantes 40% com 10 ou mais anos de experiência podem chegar até aos 17 anos de criações ou edições na Wikipédia em português”. Como mais de metade dos editores/criadores de verbetes têm seis ou mais anos de experiência, “existe um grande número de editores com centenas ou milhares de edições de verbetes em português. No entanto, nestas centenas ou milhares de edições contabilizam-se revisões, pequenas alterações ou migrações de edições”, conclui o investigador.

Entre os principais temas de edição, encontram-se as Biografias (64%), os assuntos da História (59,8%) e os assuntos da Geografia (35,4%). Temas relacionados com Política (32,3%), Música (31,1%) ou Entretenimento (29,3%) seguem-se na lista de preferências.

Relativamente às principais motivações para criar ou editar verbetes na Wikipédia em português, os respondentes ao inquérito “tendem a referir que estão a contribuir para o conhecimento livre através de partilha de informação e conhecimento (37,2%), para a realização de interesses particulares ou profissionais como por exemplo atuar em áreas de interesse temático ou profissional (13,7%), para aumentar e melhorar a informação existente (13,7%), para corrigir erros e organizar melhor as ideias escritas (11,7%), para satisfazer a curiosidade (7,8%), para satisfazer o gosto por aprender nos tempos livres (5,8%), para tentar promover a igualdade de género (3,9%), para realizar homenagem a alguém (1,9%) e, finalmente, por existir proximidade cultural entre o português e outras culturas ou idiomas (1,9%)”.

De acordo com41,5% dos inquiridos, existem conflitos entre os diversos editores/criadores motivados pelos usos das diferentes variantes do português escrito. Entre os indivíduos das nacionalidades que mais editam (brasileiros e portugueses), existem acusações mútuas de tentativa de imposição das suas variantes linguísticas.

Por seu turno, três em cada 10 alega sentir que existe bullying, racismo, xenofobia ou desigualdade no processo de criação/edição na Wikipédia em português. Entre as principais razões evocadas para descrever esse sentimento estão as tais acusações mútuas de tentativa de imposição das variantes linguísticas, bem como um sentimento de existência de um racismo epistémico e um excesso de machismo. Estas conclusões estão de acordo com María Sefidari, presidente do conselho de curadores da Fundação Wikimedia, recentemente citada pela agência Reuters: “Precisamos de ser muito mais inclusivos”, pois “estamos a perder muitas vozes, estamos a perder mulheres, estamos a perder grupos marginalizados” [1]. Por isso mesmo foi lançado, no dia 05 de fevereiro de 2021, o “código de conduta global” no sistema de edição/criação, de modo a combater o bullying na sua plataforma.

 

6 razões pelas quais a Wikipédia obtém melhor resultado no combate às Fake News do que as restantes plataformas digitais

 

Para o investigador da Universidade do Minho, Pedro Rodrigues Costa, “são seis as razões pelas quais a Wikipédia tem melhores resultados no combate à desinformação e às Fake News”. A saber:

  1. A Wikipédia é uma fundação sem fins lucrativos. Logo, não vive para o lucro e por isso não convive com a necessidade de receitas oriundas de publicidade, Marketing e propaganda. Pelo contrário, plataformas digitais como o Facebook, o Twitter ou o YouTube têm como foco o lucro. Estão, portanto, dentro daquilo a que se pode chamar de “economia da atenção”, estando sujeitas aos esquemas da captologia (conjunto de técnicas de captura da atenção) promovidas pela publicidade, marketing e propaganda. 
  2. O seu objetivo é a difusão universal de conhecimento, e não a angariação universal de pessoas para ficar na sua rede. Quem quiser fazer difusão universal de informação no seu sistema tem que cumprir as suas regras e normas de conduta, obedecendo aos seus cinco pilares fundacionais: i) a Wikipédia é uma enciclopédia de amplo escopo que compreende elementos de enciclopédias generalistas, de enciclopédias especializadas e de almanaques; ii) A Wikipédia rege-se pela imparcialidade, o que implica que nenhum artigo deve defender um determinado ponto de vista; iii) a Wikipédia é uma enciclopédia de conteúdo livre que qualquer pessoa pode editar; iv) a Wikipédia possui normas de conduta; v) a Wikipédia não possui regras fixas, além dos cinco princípios gerais e da importância de fontes confiáveis na produção e edição de verbetes.
  3. A Wikipédia não é, na sua estrutura orgânica, uma rede digital típica. É antes uma comunidade digital colaborativa. Partindo da distinção de Bauman entre rede digital e comunidade digital, numa rede o sujeito organiza um conjunto de pessoas e grupos com quem se quer relacionar. Pode ligar-se e desligar-se, acrescentar ou eliminar pessoas, subjetivamente, arbitrariamente. Habitualmente, este tipo de redes é atravessado pela semelhança e pelo idêntico. Pelo contrário, numa comunidade é necessária uma relação com um todo diverso, com vários grupos diferentes, em que há necessidades de negociação permanentes. É o que acontece nos processos de produção na Wikipédia: para se criar ou editar algo, é necessário cumprir regras comunitárias, negociar processos, respeitar contributos e conselhos dos que estão no sistema há mais tempo. Nem sempre acontece, mas é esta norma.
  4. A Wikipédia não é gerida de cima para baixo (modo top-down), mas antes em consenso de maiorias e até mesmo através de sistemas de votação. Ao ser gerida pela comunidade, na horizontal, não obedece aos ímpetos individualistas, habitualmente implícitos nos princípios do lucro (competição, propriedade, mais-valia, etc.). O único objetivo é o do consenso em torno de regras de ação no seu interior e o da garantia de fontes confiáveis.
  5. O código de conduta do wikipedista é atravessado por um ethos semelhante ao do cientista. Este assenta fundamentalmente em quatro pilares: universalismo, comunismo, desinteresse e ceticismo organizado (Merton, 1973). Universalismo, porque o wikipedista está sujeito a um padrão universal de regras provenientes do ecossistema da Wikipédia; Comunismo, no sentido em que o conhecimento, proporcionado pelo trabalho de criação, edição, aprovação e manutenção de uma entrada no seu ecossistema, constitui património comum da humanidade, e não propriedade privada. Não existe autoria, logo não existe diretamente a tentativa de obtenção de ‘lucros’ (pessoais, económicos, sociais, políticos, etc.); Desinteresse, porque o único fim a que se destina a Wikipédia é a reprodução universal de conhecimentos e uma permanente validação e verificação de fontes confiáveis nos constructos informacionais; Finalmente, um ceticismo organizado porque o sistema de regras implica a obrigatoriedade de utilização e de cruzamento de fontes independentes com validade ou legitimidade social e científica, privando o sujeito de formas de preconceito e de conclusões precipitadas sobre as entradas a criar ou a editar.
  6. O algoritmo da Wikipédia é a própria comunidade humana de editores/criadores, e não um sistema técnico que visa capturar a atenção para reter o sujeito o maior tempo possível na plataforma (como acontece com a maioria das plataformas digitais). A existência de bots e scripts no ecossistema wikipedista é por razões meramente técnicas, nomeadamente para manutenção do sistema. Estes bots e scripts não visam a expansão para além do sistema nem a captura de atenções com recurso aos motores de busca. É a sua aceitação universal que coloca os verbetes da Wikipédia no topo dos motores de busca, e não um sistema de anúncio-patrocinado como acontece nas restantes plataformas”. 

Este estudo resulta de um inquérito aplicado junto dos editores/criadores ativos da Wikipédia em português (uma amostra de cerca de 10% do universo médio de editores ativos). Em breve será colocado em revisão junto de pares em revista académica da especialidade, com mais informações sobre o perfil dos wikipedistas e sobre os constrangimentos associados ao modo de produção colaborativa. Para o autor, “o modo de produção colaborativa possui aspetos positivos, mas também traz à tona os problemas deste modelo de produção e difusão de conhecimento, na medida em que existem relatos de abusos de administradores face aos novos editores que querem contribuir, existem relatos de desigualdades de género e até de homofobia, e ainda relatos sobre empresas, instituições e até partidos políticos que podem estar a pagar a pessoas para alterar artigos, o que poderá estar a gerar um conjunto de implicações ao nível da Memória, da História, da vida política e até da justiça”, conclui.

 

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