Rua

Joana Cardoso

Arquitecta

 

À luz filtrada do entardecer, entro na minha rua. A rua que me viu crescer, primeiro de soquetes, a baloiçar a lancheira colorida, depois adolescente com balandraus verde-cinza e mochila pendurada de um só ombro, mais tarde universitária com resmas de papéis debaixo do braço. Silenciosa, quarto aberto ao céu, paredes feitas de casas e chão de asfalto preto, esta rua cresceu comigo, deixei impressa nela as minhas emoções, as minhas dores e as minhas esperanças. 

 

Chegam-me as memórias salpicadas mal faço a curva inicial, um amargo na boca que cheira a carro com bafio, um soco de inquietações há muito ultrapassadas. Mais uns passos e vejo as glicínias da casa abandonada, roxas e fragantes, e memórias de mil primaveras chegam de supetão, o vestido azul-pálido que levei a ver as cozinhas quando tinha doze anos. Um pouco adiante, um raio de sol traz de volta as tardes quentes na Feira do Livro, a minha altura favorita do ano, que nem o Natal nem aniversários se comparavam, o sabor descomprometido do acontecimento, o cheiro a papel e as barracas recém-montadas no Pavilhão Rosa Mota, os fins de tarde a comer Soleros e a ler os livros acabados de quebrar, novos para mim mas velhos para o mundo. Tudo era novo para mim, como ainda hoje o é e assim continuará até eu me render à confortável certeza da vida pronta-a-vestir, era um casaco casamento-na-herdade e uma saia T2-em-São-Mamede a condizer, muito obrigada, boa tarde, passe bem.

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De repente os meus passos já me trouxeram até ao cruzamento e eu sem dar conta já retornei ao carro bolorento, à angústia da lealdade exigida, ao sufoco de ter que aceitar a injustiça e ficar calada, mas calada é coisa que nunca fiquei e na esquina da casa em frente, precisamente onde o Zé Luís bateu quando me vinha buscar, anos mais tarde, encontro uma outra memória, esta mais agradável, mais colorida, feita de ciúmes e rivalidades que sabem bem, porque essa parte da vida era a brincar. Agora já vejo a casa, o grande pinheiro, e uma torrente de memórias boas atropelam-me o coração, enchendo-me as aurículas, os ventrículos e até a aorta, mas o problema das memórias boas é que trazem lastro.

 

Ao chegar a casa toco à sineta, inspirando o cheiro das glicínias – estas são mesmo nossas – e afloro o granito áspero do muro com a polpa do dedo indicador. Nos meus braços, o cerebrozinho recém-construído do meu filho absorve tudo, criando a sua própria rua dentro desta.

 

Sabe bem saber que esta rua vai ser sempre minha, pacientemente aqui à espera, um casulinho de memórias e expectativas onde regresso quando estou cansada de ser globe-trotter, nómada ou simplesmente imigrante. É um privilégio ser Cidadã do Mundo, mas privilégio maior é ter aqui, sempre, o meu Lar.

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