Simples caseiros

Na minha meninice não havia, na minha freguesia, um café e muito menos um aparelho de televisão.

Isso era coisa de vilas ou cidades.

Mas, no meu Lugar, havia uma divisão parecida com um curral, que servia de mercearia. Uma porta exterior com alguns vidros, era a única fonte de iluminação natural. Luz eléctrica, havia há poucos anos. Funcionava, também, como posto de correio e de telefone público. Ali tudo se vendia a granel, e também servia vinho ou aguardente, dobradiças ou pregos, ou doces da Páscoa, um regalo para os meus olhos gulosos.

 

Do tecto da mercearia sobressaiam poderosos troncos de Carvalho, apenas, descascados, nus, e sem outro acabamento ou pintura. Eram o suporte do soalho e das taipas do primeiro-andar. Estes, passavam um escasso palmo acima das cabeças dos homens mais altos. O chão estava cimentado e afagado com óxido de ferro vermelho, enquanto que, as paredes eram devidamente caiadas. O balcão em madeira, era largo e a todo o cumprimento do espaço. Nele assentava uma balança branca da marca Avery. Numa dessas traves pendia um cartaz publicitando a uma marca de cigarros que rezava assim: “ Sporting, o cigarro da mocidade, Sporting o cigarro que dispõe bem.”

 

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Não me recordo se o dito cartaz alguma vez tenha suscitado alguma polémica ou discussão clubista. O futebol não fazia parte da vida das pessoas. Até os aparelhos de rádio, era um bem raríssimo, ao alcance de menos de meia-dúzia de lares.

 

Do lado esquerdo, na esquina, juntavam-se todos os dias, mais ao fim da tarde, alguns homens em conversas de circunstância, enquanto um ou outro fumava e bebia uns bagacitos. Tudo com o maior respeito, porque o merceeiro não tolerava desrespeito, nem jogos de cartas, ou outros. Já bastava o facto de alguns escarrarem no chão, alisando com  um pé como que a carimbar a porcaria. É verdade que, o merceeiro, de imediato lhes chamava a tenção, para o fazerem fora da porta.

 

As crianças não tinham ordem de ali permanecer, para além do tempo necessário para o avio que as Mães lhes mandavam fazer. Uma vez as compras aviadas, saíam porta fora rumo ás suas casas.

 

Mas que bem cheirava aquela mercearia e que limpeza tinha. Só que, fazer as compras, era um processo lento. Eu aguardava pela minha vez deliciando-me com todos os pormenores da dona de casa que, sem qualquer papel escrito, dizia o que pretendia, de forma metódica e sequencial.

 

Ao fim, o merceeiro, homem honesto, de boas contas, de lápis na mão, somava as parcelas, fazia a prova dos nove. Acto continuo, o merceeiro perguntava-lhe: “ é para pagar ou para por na livreta?”. “Sim põe na livreta”. E ele escrevia a despesa na livreta da tia Clarisse e na sua. Ao fim da quinzena pagava. Acto continuo, ela, metia as compras na alcofa de junco colorido, de forma organizada e, já fora da porta, levava-a à cabeça seguindo a pé o caminho de casa.

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Mas, o tempo, naquela altura caminhava vagarosamente, sobrava. Dizia o merceeiro para sua cliente: “ e que mais Clarice? “ “Olha, mais meio quilo de massa cortada, uma quarta de cevada, um a quarta de açúcar amarelo, uma quarta de café, uma barra de sabão clarim, um quartilho de azeite ”… Diligentemente o merceeiro, a quem nunca vi sem gravata, metia os produtos em cones de papel pardo, feito com a habilidade de muitos anos, dispondo-os apenas  num pedacito de balcão. Ainda não tinham chegado as embalagens.

 

Divinal, era aquele cheiro do café as ser moído.

 

E enquanto continuava o diálogo do merceeiro e a freguesa, os homens permaneciam no seu mundinho, de machos ignorantes, alheios a tudo. Aquele, era um assunto de mulheres.

 

Assisti, por via disso, a alguns debates que, como é natural, ultrapassavam todos os limites da minha imaginação. Mas registei-os

 

Nesse dia a questão em debate era o pagamento da décima, da casa ou dos terrenos,  por uma ínfima parte de alguns.

 

Alto, magro, e sempre com uma samarra pelos ombros, tossicando o que identifica o fumador, estava o tio Claudino. Nesta personagem havia três coisas, nele, sempre presentes. A dita samarra e o cigarro e a tosse de fumador inveterado.

 

Raramente a sua conversa, por mais sério que fosse o assunto, se encerrava sem ter uma chalaça, ou coisa do género. Sem se rir, apenas os olhos o denunciavam, o tio Claudino tinha o condão de pôr todos bem dispostos, excepto o merceeiro que nunca o vi, sequer, sorrir. Ele achava tudo um aborrecimento, uma chatice. Era um homem amargo.

A esse propósito, falava-se que a morte do único filho adolescente, o mudou completamente. O azedou.

Evoluía a conversa sobre a dita décima, demasiado alta para os magros proventos que lavradores, quando o tio Claudino rematou o assunto desta forma.

“ Olhai companheiros, temos que nos conformar. Isto não é nada nosso. Nós não passamos de uns simples caseiros com algumas posses. Se o Estado quiser vem e leva tudo”.

 

Como é evidente, não entendi a metáfora nem o seu alcance. Mas pareceu-me tão mal, tão despropositado e inverosímil. Então o Estado roubava as pessoas?

Mas gravei-o, levei-o pela vida fora até o entender na sua plenitude.

 

Hoje, quando vejo António Costa, o actual primeiro-ministro a ameaçar com o arrendamento compulsivo das casas, não posso deixar de me recordar das sábias palavras do tio Claudino.

 

E, sim, somos uns simples caseiros, sem posses nenhumas.

 

(José Venade não segue o actual acordo ortográfico em vigor).

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