Uma questão de escala

Na minha infância havia um pequeno largo pelado, pelo uso, a que chamávamos pomposamente de campo de futebol da Tapada, cujas balizas eram duas pequenas pedras amovíveis, de cerca de um quilo, de medidas acertadas entre as duas equipas, no momento de cada jogo.

Era um campo com um tamanho da fazer inveja.

Ladeado a poente por um rego onde corria água todo o ano, servia para nos saciar a sede a cada momento do jogo, sem que este parasse.

Mas, o recinto, multiplicava-se em inúmeras actividades desportivas, para além do futebol,   como o jogo da Bilharda, a Barra ou o Espeto. Um multiusos descoberto.

Todos os dias, nos pequenos intervalos das tarefas que os nossos pais nos mandavam fazer, era para ali que convergíamos, para soltar a nossa adrenalina e vigor. Tenho a sensação de que nunca nos cansávamos.

Naquela altura, não havia tempo para se ser criança, nem de ter tempos mortos. Depois da escola todos ajudavam nas tarefas da família, o que fazia com que, esses momentos, fossem ainda mais deliciosos. Mesmo os trabalhos de casa nunca foram uma prioridade, embora tivesse que haver um tempinho para eles.

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Sei que esse tempo não foi o melhor dos mundos, na medida em que, os horizontes escolares eram curtos. Que se viveram tempos sem grandes oportunidades e muito obscurantismo. Sei agora, porque, obviamente não sabia.

Sei, ainda, que não se pode ter tudo. E quando digo tudo estou e referir-me à liberdade de ser criança, que tivemos: de brincar e trepar montes, árvores e penedos de poder correr descalços, pelos carreiros dos montes, espetando picos do tojo na sola dos pés, de ir brincar para o Penedo da Gatinha, ou o dos Ninhos, ou ir pelo monte até à capela da Senhora da Encarnação, com autorização, é certo,  mas sem a vigilância castradora dos  tempos actuais.

Mas também de levar vacas e ovelhas para o monte, depois do mês de Abril e de as guardar, ou de ir as pinhas nas férias escolares do Verão, na hora do calor.

Comparativamente, fomos muito mais felizes, se nenhuma dúvida.

Com a chegada dos millennials, ou da geração Y, ou Z e outras tendências, as  profissões de menos dedo e mais musculadas foram desaparecendo ficando para os menos capacitados, informaticamente, os ditos empregos mal remunerados.  E cada vez está pior.

Só que o mosaico da sociedade precisa de todos.

O que temos é uma geração de deprimidos que estudam doze ou vinte anos, sem terem grandes perspectivas no mercado de trabalho, alheios ao factor trabalho, de que nunca o Estado, a família e a  sociedade os devia afastar.

É muito importante termos cada vez mais pessoas com estudos, mas também é importante que, ao mesmo tempo, o Estado crie legislação para que possam ter pequenos trabalhos, para juntarem o útil ao agradável e não entrem no mercado laboral, quando a mola já custa a vergar o que dá origem aos nem nem.

E mais importante, ainda, é tudo fazermos para que as novas gerações se alegrem, que deixem de ser zombies tristes e sombrios e voltem a ter a alegria que tiveram os seus avôs ou bisavôs.

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É que nem todos gostam de estudar, mas de por a mão na massa. Ora, a maioria dos cursos profissionais são uma brincadeira de lápis e papel. De uma vez por todas, que essa via que podia e devia ser da maior utilidade, tem que contemplar todas as áreas da construção civil, ( e são tantas e com tanta carência)de fazer com que ponham a mão na massa da realidade, que saiam para as empresas e se formem excelentes profissionais e não seja um veiculo para fins dúbios e que nada aportam à economia.

A entrada no mundo do trabalho, na ajuda à lavoura da família que todos tinham, acontecia mal se aprendia a andar. As ocupações surgiam paulatinamente consoante a capacidade física que cada um tinha para as realizar.

Avaliando esse meu tempo e o actual, verifico que no meu faltaram anos de educação escolar. E esse défice ainda continua, o que muito lamento.

Exceptuando essa grave situação, foi uma geração de homens e mulheres que, muito contribuíram para que os variados sectores da sociedade se movessem. Agora está a definhar perigosamente.

Não tivemos muitas coisas, eu sei,( nem sentimos falta delas, porque não se sente falta de algo que se desconhece) mas fomos donos e uma liberdade incomparavelmente melhor do que a que está que  está a gerar a  sociedade higienista, securitária e proteccionista  em que vivemos. Podemos ser crianças em toda a plenitude, enquanto que, agora, as crianças não têm essas regalias e vivem reféns do medo dos pais ou da família.

Aos Domingos à tarde, tínhamos umas horas de plena liberdade e entregávamos aos jogos até ao anoitecer.

Recentemente tive saudades desse maravilhoso largo, que povoou e ainda povoa o meu imaginário, embora de duas maneiras. Aquele onde brinquei e a actual.

Fui revê-lo.

Que desilusão. Para além de estar irreconhecível, o largo encolheu drasticamente.

Mesmo assim, por breves instantes, fechei os olhos e senti a gritaria dos meus colegas como se naquele momento estivesse a decorrer um daqueles jogos.

Acabrunhado abandonei o sítio, mas a memória, essa coisa incrível, viajou e, num ápice, revi muitos dos meus colegas, alguns já falecidos.

Prefiro continuar a fazer o passeio das memórias, retidas num escaninho do cérebro e a cada momento revisitá-las, com o mesmo entusiasmo de há décadas atrás, porque conheço muito bem o que é uma questão de escala de que se trata. O espaço, o campo da Tapada, é o mesmo.

 

(José Venade não segue o actual acordo ortográfico em vigor).

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