Martinho

Enquanto somos crianças o tempo anda com se fosse um caracol.

Parece que tudo está estagnado, que os dias e noites são enormes e nada acontece que aplaque a nossa ânsia de crescer e de nos tornarmos adultos e, com isso, de caminhar rapidamente para o fim.

Este será sempre o entendimento de uma criança, na puberdade ou na adolescência, como foi o meu caso. Faz parte da dinâmica do crescimento, embora por esse tempo, tudo corresse devagar. Quase ninguém usava relógio de pulso e quase todos trabalhavam na agricultura. O tempo ainda era, para muitos, medido pelo Sol.

Martinho era um lavrador remediado que vivia, ele a sua família, dos parcos rendimentos que os campos produziam. Só que família ia aumentado e Martinho começou a pensar, a dar voltas na cama, para ver, como aumentar os seus rendimentos.

“Se eu tivesse uma junta de bois, fazia uns carretos, e ganhava algum dinheiro. Mas como? As duas vacas que tenho, são precisas porque dão leite para as crianças e para a casa, e ainda se vende algum. Além disso, todos os anos parem uma cria que dá uns bons cobres, depois, para as mulheres, são melhores de lidar do que uns possantes bois”.

Martinho estava num dilema acrescido porque, se por um lado, precisava de obter mais rendimentos, por outro era a ocasião ideal em realizar o seu sonho- que ele sempre teve e acalentou – de ter uma junta de bois, pelo menos. Ora, realizar-se-ia o seu sonho, juntaria o útil ao agradável.

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Sorrateiramente levantou-se da cama e dirigiu-se a um determinado buraco na parede de pedra, onde o casal guardava as suas economias.

Contou e recontou, passando as mãos inábeis pelas notas enormes, em escudos, grandes como lenços da mão de senhora, com carinho e apreensão. O dinheiro amealhado apenas dava para comprar um boi, ainda por acabar de fazer. O melhor seria comprar dois bois pequenos e ele acabaria por os criar e educar à sua maneira. Mesmo assim, o dinheiro não chegava, tinha que contrair uma hipoteca, porque bois a ganho, ele, não queria.

E se um boi morresse ou os dois? Nesse caso perderia tudo e ficava mais pobre, ainda. Tinha que correr esse risco.

Mal dormido, manhã cedo, colocou o problema à mulher. Esta respondeu-lhe: “oh homem, isso é contigo, são coisas tuas eu disso não entendo nada.”.

Martinho, nesse dia, ao anoitecer, para não ser visto, pôs a samarra de gola de pele de raposa sobre os ombros, e dirigiu-se a casa do senhor José Santos, pessoa de teres e haveres e, de chapéu na mão, colocou-lhe a sua questão. Este sopesou o negócio, fez o seu jogo habitual e acabou por aceitar, impondo a condição de o Martinho lhe assinar um papel hipotecário sobre a sua casa.

“Ò senhor José, mas eu nem assinar o meu nome sei! Não faz mal, pões o dedo! “. Na verdade, Martinho não só não sabia assinar, como não sabia o que era uma hipoteca. Mas nada questionou.

Há momentos na vida que é muito melhor ser ignorante, ajuda bastante, porque se Martinho soubesse no que se ia meter, sairia dali a correr a sete pés.

Um ano depois já Martinho, com a sua junta de bois a que ele chamava de Albarinhos, fazia trabalhos de carreteiro, tinha criado a sua própria empresa sem dar cavaco a ninguém, nem às finanças, que ele ignorava. E a vida começou a correr muito melhor ao Martinho que depressa se livrou da dívida.

Os bois, de raça Pisca, com que sempre sonhou, com uma enorme cornadura retorcida e aos quais ele tratava com o maior desvelo e vaidade. Era o seu orgulho.

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Martinho era um homem, em tudo, tranquilo, desde a sua forma de comunicar aos gestos que fazia e até incutiu nos seus bois o mesmo estilo de vida. Fumador inveterado, Martinho, nunca se furtava a uma boa conversa e os bois, mesmo sozinhos, paravam e aproveitavam para comer umas ervas no caminho ou valados, enquanto ele os tranquilizava: “quietinhos Albarinhos”. E eles obedeciam-lhe. Ele tinha sempre tempo.

Fruto da emigração, para o Canadá, começaram a surgir os primeiros tractores, nada que incomodasse o Martinho, até porque ele e os seus Albarinhos nunca foram tão solicitados como agora.

Era o Martinho que, com os seus Albarinhos, subia e descia o monte por caminhos perigosos para, na sua zorra, trazer a alvenaria até ao sopé da serra, para as casas desses emigrantes ou para as amarrações das vinhas.

O progresso trazido por alguns tractores, não foi acompanhado pela melhoria dos caminhos, pelo que só Martinho, com os seus Albarinhos, pachorrentos como ele, o sabiam fazer.

Martinho, com esta actividade complementada pela lavoura familiar, levou a sua vida sem stress, coisa que jamais o afectou e acho que jamais soube o significado de tal palavra.

* O autor não segue o acordo ortográfico de 1990

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