Traço

O professor fez, com um giz, um traço no quadro.

Permitam-me que descreva o dito traço: branco, a percorrer o quadro de lousa, fazia uma diagonal. Não era uma diagonal perfeita. Traçada por uma mão humana, nunca poderia ser inteiramente autêntica. E era isso que a tornava única. A sala cheia observou a introdução, o desenvolvimento e a conclusão do traçado. O traçado não se mexia. Não tinha vida. Não tinha sentimentos, não tinha alma, não tinha mente. Perdoem o meu estoicismo, mas só existia pela simples razão de existir.

Mas o seu tamanho era suficiente para ser inevitavelmente avistado por todos os presentes. Então existe uma razão para a sua existência. Ou existiu. Havia um propósito para o professor o ter concebido. Era uma obra de arte. Ou talvez não. Talvez fosse somente um inútil traço, algo que tinha sido originado por um reflexo involuntário e inconsciente do professor.

A existência do traço era uma incógnita. Essa foi a conclusão que os alunos tiraram depois de observarem o traço. O professor, sem dizer nada, de forma mecânica, depois de percorrer o seu olhar por todos os presentes, com o giz na mão, pousou-o na sua secretária. Pausadamente, completo dono do seu tempo, aproveitou para percorrer uma outra vez o seu olhar pela turma. De seguida, com a mesma calma e rigidez de sempre, pegou num apagador. Estendeu o braço para o traço, e, de cima a baixo, numa diagonal, com um único e simples movimento, apagou o traço.

Estas palavras não acabam aqui, não são assim tão fáceis de apagar como o traço. Talvez o professor tivesse apagado o traço com demasiada indiferença. É peculiar como uma ação tão vulgar possa ter mostrado tamanha insensibilidade. Os que viram o traço como uma obra de arte, que era a minoria, entraram em delírio. Os que não viam nada, como se nunca tivesse lá estado um traço, continuaram à espera de alguma ordem do professor. Uma parte mais isolada pensou na incógnita do traço, mas esse pensar era incoerente e distraído. Não havia qualquer motivo para se preocuparem com o assunto.

O professor falou, os alunos abriram o manual e as folhas remexeram-se em uníssono. Rapidamente já ninguém se recordava sequer que tinha existido um possível traço naquele quadro, num outro momento, naquele dia, naquela aula, daquele professor. Tamanha insensibilidade! E mais ainda o cinismo dos que se lamentavam há uns mero segundos atrás o desaparecimento de uma obra de arte.

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Então eu, no fundo da sala, com uma caneta azul, fiz um traço numa folha do caderno.

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