Editorial

A Madrinha Rica!
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Arlinda Rego Magalhães

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Adoro tomar um bom café, sem açúcar, entre as dez e as onze horas da manhã.

No Verão perto do mar, no Inverno na cidade.

Ontem, ainda mal me tinha ajustado à cadeira, e já uma senhora, com um lencinho de cornucópias ao pescoço, me pedia licença para se sentar, na minha mesa, pois a pastelaria estava cheia de gente.

Não cheguei a responder, e já as cornucópias azuis, tinham voado do pescoço dela.

Deixando à espreita ansiosas, umas lindíssimas pérolas.

Tomei com agrado, o café bem quente! Ouvi um riso fininho, e notei o olhar cúmplice, que me informava da proveniência das pérolas.

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Eram da madrinha Rica!

Rica, concordei!

O colar era realmente, bom e bonito.

Ouvi então uma gargalhada, rica não era a condição económica da madrinha, era antes o diminutivo de Ricardina.

A madrinha Rica, senhora afidalgada e solteira, tinha vinte e dois afilhados.

Ficaram todos com uma lembrança.

Os rapazes com relógios de bolso ou pulseiras.

As raparigas com um cordão, ou uns brincos à rainha.

Em ouro claro está! Só ela, a Teresinha tinha recebido o lindíssimo de colar de pérolas, mais uns brincos antigos, porque era a afilhada mais velha.

Na Páscoa a madrinha, recebia vinte e dois ramos de flores, e dava um saco de amêndoas e cinco escudos a cada afilhada, a mesma quantia e rebuçados do Senhor dos Passos aos rapazes.

No Natal, todos tínhamos um presente do Menino Jesus, não havia cá Pai Natal!

As prendas eram meias de vidro para as moças, peúgas pretas para os rapazes!

Os pequenos recebiam chocolates, e uma saca pequena de nozes.

Quando alguém reprovava, ou tinha feito asneiras, das grandes.

Havia uns chocolates, que eram substituídos, por pedrinhas de carvão, embrulhadas em papel colorido. Como é que ela sabia das asneiras grandes, ninguém descobriu!

Mais um riso dos fininhos, e fiquei a saber que, todas aprenderam ponto de cruz e bainhas abertas com a madrinha.

E os rapazes aprenderam, a pintar azulejos dos monumentos, em azul e amarelo.

Com o carpinteiro da casa, faziam tamancos, bonecos e animais de madeira.

A madrinha Rica tratava, de nos dar uma ocupação, ensinar um ofício.

A Teresinha tinha oitenta e nove anos, era pequenina, cabelo todo branco, tailleur azul escuro, e sapato com um pouco de tacão.

Entre um gole de cevada e um bocadinho de pão, disse que tinha cinco anos quando começou a II guerra mundial.

Sofreu-se muito naquela época.

Não havia dinheiro para roupas.

Não havia açúcar, nem chocolate e muito menos brinquedos.

E era tudo racionado.

O Salazar quis ficar neutro, sem mandar homens para a guerra.

Mas depois também não podia vender, o estanho, o alcatrão, químicos, a manteiga ou o queijo.

Os países em guerra, só queriam comprar o volfrâmio.

Muitos até ganharam bom dinheiro.

Aqui também não havia muitos bens.

Racionaram a gasolina e o gasóleo.

Quem tinha carro, só podia andar 3 vezes por semana. Não havia bacalhau, azeite, sabão, óleo nem açúcar.

Era tudo, com senhas de racionamento, de três em três meses.

Nós não tivemos a guerra, no nosso país, mas lá fora foi muito difícil e perigoso. E morreu muita gente!

O Salazar controlava tudo, até o preço do leite.

Em 1942 até racionou a electricidade, o gás e o carvão.

No fim da guerra, em Portugal, havia quase metade dos comboios parados, por falta dos combustíveis.

Por isso é que a madrinha, era tão respeitada!

Ela ainda ia dando trabalho, a algumas pessoas.

Sopa e pão não faltava, na casa dela. E o prezigo (a refeição principal, o almoço e o jantar) também não, ela criava dois porcos por ano, e havia sempre carne na salgadeira.

Nós os afilhados fizemos todos, a primeira comunhão, a comunhão solene e o crisma.

A madrinha fazia os vestidinhos para nós, e os fatos para os rapazes. Era dada à costura e muito perfeitinha.

Os sapatos de verniz, também era a madrinha Rica que oferecia, para a primeira comunhão, e para o exame da quarta classe. E ficavam de uns para os outros.

O maior gosto da madrinha, era ter um dos afilhados padre, e se possível também uma freira.

Calhou ao Gaspar, ir para o seminário, e fez-se padre! Para freira ninguém quis ir! Risinhos!

À morte da madrinha, a casa ficou para os velhos e deficientes, das aldeias. E os terrenos ficaram só para se fazer uma escola nova, uma igreja e um campo de futebol.

Foi o Gaspar, que fez o enterro, e que teve de cumprir, aquelas últimas vontades da madrinha.

O Senhor Prior, andou a rondar a madrinha, durante um tempo, para ela lhe deixar a casa. Mas ela correu com ele da quinta. Dizia que ele tinha um olhar guloso e uma língua suja. Além disso, ele já lá contava com quatro casas.

A rica madrinha Ricardina, fez muito, com muito pouco.

Valia-lhe o jeito para a costura, os bordados e os doces.

As amêndoas e os rebuçados do Senhor dos Passos, era ela que os fazia, e vendia para fora.

Assim como os enxovais bordados à mão, que eram caros.

De repente começou a chover torrencialmente, e a trovejar.

A Teresinha assustada, tomou a sua cevada calada, e no fim de comer o pão, deixou o dinheiro na mesa e levantou-se.

Pôs as cornucópias ao pescoço e foi para a porta.

Logo que a chuva abrandou, olhou para mim a sorrir, disse-me adeus, e saiu.

Adeus Teresinha!

1 comentário

  1. Liiindaaa conversa…linda lição de vida…como fazer tanto…com tão pouco… a FELICIDADE so precisa de dar amor…receber amor…e saber educar, cuidar e respeitar o outro…

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