Editorial

Saudades de dormir no chão
Picture of Damião Cunha Velho

Damião Cunha Velho

Partilhar

Os jovens hoje têm a vida facilitada para viajar. Nunca se viajou tanto como agora.

Na minha adolescência, o Interrail era a grande oportunidade para ir conhecer outros mundos. Comprava-se a viagem de comboio, para toda a Europa. A viagem tinha a duração máxima de um mês, bastava entrar num comboio, sem marcação e decidir onde sair, visitar e voltar a entrar. Era preciso passaporte e comprar moeda dos diferentes países que se pretendia visitar. Não haviam hostels, dormidas low cost, moeda única, nem fast foods. Para quem não tinha dinheiro, a solução passava por dormir no comboio, no chão das estações de comboio e comer sandes e enlatados. Comigo foi assim e fiz vários Interrails que deixaram muitas saudades.

O inverno era a altura ideal por quase não haver turismo, menos confusão e assim se conhecia melhor a vida real dos locais. Felizmente, ainda não tinham inventado o turismo em massa.

Lembro-me de estar na Checoslováquia, em janeiro de 1992, com 24 anos acabados de fazer. Um frio de rachar e depois de três dias em Praga voltei a entrar no comboio na capital checa com destino a Roma. Fui direto ao bar, pousei a mochila em cima de um assento e pedi uma cerveja. Nunca tinha bebido uma cerveja com 17 graus de álcool e em pleno inverno. Tocou-me.

Procurei uma cabine vazia onde pudesse dormir nos bancos, dentro do meu saco-cama de penas. As duas noites anteriores tinham sido num quarto alugado em Praga, mas a anterior a essas tinha sido no chão da estação de comboios de Nuremberga.

Uma jovem entrou. Ficamos frente a frente na mesma cabine. Trocamos olhares. O comboio arrancou. A viagem era longa, mas o comboio não tinha pressa. A conversa começou com embaraço de parte a parte. Olhos azuis, linda e escultural, não conseguia pronunciar o meu nome. Entre o inglês e o francês, a conversa fluiu. Era recém-advogada e tinha de ir a Roma em trabalho. Falámos sobre livros e viagens, mas sobretudo como era difícil viver num país de Leste. Porém, havia um rasgo de esperança de que, em breve, tudo iria mudar e isso notava-se no seu olhar. Um olhar que se abstraia para sonhar.

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Abri a mochila e tirei um saco cheio de cascas de laranja. Disse-lhe que o cheiro forte das laranjas me tinha ajudado a entrar no país dela. Distraíram os cães-polícia e os polícias que me tinham revistado na fronteira com a Alemanha. Meti a mão dentro do saco e tirei uma “prenda” que trazia de Amesterdão. Perguntei se queria experimentar e aceitou. Perfumámos a cabine e a imaginação!

Eu saí em Florença, ela continuou para Roma.

Visitei a lindíssima cidade de Florença e à noite voltei ao chão da estação para dormir. Um polícia escorraçou-me e tive de ir de comboio para outra estação da mesma cidade onde acabei o resto da noite.

Num café da Piazza Pitti, enquanto tomava um cappuccino, tentei soletrar o nome dela. Não fui capaz e ainda hoje não consigo. O checo é difícil e quase se gagueja quando se tenta dizer algo. Difícil difícil é não ficar gago com as checas!

Recordar é viver e tenho saudades dos tempos em que com pouco se era feliz. Saudades também da juventude. Hoje, se dormisse uma noite no chão, tinha à minha espera três meses de fisioterapia. E se tivesse uma conversa com uma checa como aquela, não sei se estaria vivo!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Mais
editoriais

Junte-se a nós todas as semanas