Editorial

A mãe,  a menina e o gato!
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Arlinda Rego Magalhães

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A menina desta história tem quatro anos de idade.

Era uma garota expressiva, observadora e engraçada na opinião dos mais velhos.

Um dia fazia praia com a mãe e uns primos, quando lhes foi comunicada a morte súbita do pai.

Era um marido, pai irmão e tio muito querido.

Na opinião dos sobrinhos e primos direitos muito mais velhos, era um tio muito elegante, (sempre de fato e gravata, muitas vezes fatos de linho), educado e conversador.

Os homens da família admiravam-no, as mulheres adoravam dar passeios com ele e ouvir histórias das viagens.

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A esposa ficou inconsolável, muito triste e a chorar baixinho.

Havia sempre lágrimas naquele rosto lindo, que a menina não se cansava de limpar.

Não queria ver a mãe chorar.

A menina viu a mãe linda e triste, refugiar-se no seu luto cerrado, tal era a saudade.

Não entendeu muitas das conversas que ouviu, muitas das atitudes que observou, mas ainda hoje recorda cada cara, cada gesto cada palavra.

Não chorou, mas não largava a mãe, a boneca Maria Helena e o gato, o Amarelo, enorme e meigo, também não a largava a ela.

Formavam um duo inseparável!

Este pai e esposo, fazia frequentes viagens ao  Brasil onde tinha negócios, por vezes com interregnos de meses.

Estava a preparar-se, para vir definitivamente para Portugal, quando faleceu.

E tudo mudou!

Definitivamente nada seria como antes.

A menina e a mãe tiveram de viver só as duas, com as recordações físicas e as memórias passadas.

Não havia nem passos, nem voz de homem naquela casa. Tudo era muito calmo, muito sereno.

Só se ouvia barulho quando a menina e o Amarelo brincavam às escondidas. Ele descobria-a sempre. Mesmo quando ela o embrulhava numa manta e o metia numa caixa debaixo da cama, ele em pouco tempo chegava perto dela. Ele era mesmo grande, tão grande que tinha força suficiente para a impedir de subir para a cadeira junto à janela, antes de a mãe chegar.

Era dia de feira quinzenal, e da janela do primeiro andar era maravilhoso apreciar aquelas “nuvens brancas”, formadas pelas tendas no Largo da Feira.

Chegavam carros puxados por cavalos, cheios de produtos para venda e cavaleiros que vinham comprar arreios, cabeços e até selas numa tenda muito próxima da casa.

Quase debaixo das janelas ficavam os ourives, encostados à parede e junto de casas de confiança.

Era a feira!

A menina e a mãe ficavam a ver o bulício e os pregões, enquanto o gato se deitava à frente da menina, em cima da janela.

As discussões com o Amarelo eram frequentes, pois ele estava sempre a preveni-la de eventuais perigos. Ela achava que ele tinha a mania que mandava.

A meio da manhã mãe e filha saíam e iam comprar tremoços e boroa de certa padaria.

A menina encantava-se com tudo o que via, os pintainhos nos cestos e os patinhos, as galinhas e até cordeiros e ovelhas presas por cordas às cadeiras à espera da melhor oferta, era um autêntico espectáculo.

No entanto a menina só queria tirar os sapatos e experimentar as soquinhas de madeira e pele.

Não teve sorte,  a mãe só lhe comprou um par de socas, aos cinco anos e ela, só as calçou uma vez. Começou por dar um valente trambolhão e depois do sangue no joelho, preferiu andar descalça.

Constipou- se, depois fez uma amigdalite e  as soquinhas ficaram guardadas. Uma tristeza!

Consolou-a o gato, que deixou que ela lhe colocasse uma touca de bebé na cabeça.

Muitos dias depois chegou mais um baú do Brasil. Era em pele com esqueleto de madeira, era lindo, estava cheio de papéis colados e vinha cheio de surpresas.

Fotos, álbuns, relógios, duas catanas, vários punhais com cabos lindos e de vários tamanhos, e ainda dois crocodilos adolescentes empalhados e uma pele de cobra.

Apesar da tristeza, esse dia foi único e mágico. Ficaram todo o dia em casa, a chorar, a rir, a recordar a contar histórias e  a recordar o pai, no silêncio da casa.

A mãe, a menina e o gato!

1 comentário

  1. Viver… é isso.
    Não é passado, e presente vazio, só recordar, satisfaz…
    Politicos bebem Dão, mas não só, …
    Repisam, e recordam…
    Arte para fazer melhor, precisa-se…

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