Editorial

O VAZIO
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Joana Cardoso

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Arquitecta em Londres

 

Os edifícios altos alinham-se na rua deserta. As poças de água reflectem o céu azul ultramarino e o ritmo improvisado das janelas iluminadas. Se pudéssemos voar até um desses quadrados de luz – um dos mais altos, bem longe das poças e do frio do asfalto – veríamos Amira sentada à secretária, a cara empalidecida pela luz azulada do computador, as mãos magras e nervosas a tocar nas teclas com a agilidade de uma pianista.

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Em vez de música, ouve-se o tac-tac-tac das teclas quadradas; em vez do jantar fumegante, apropriado à hora, vê-se uma sanduíche meia comida, esquecida num prato preto e branco. De vez em quando Amira leva à boca uma lata de limonada; outras vezes leva uma das mãos à barriga, num gesto absorto que dura dois segundos.

Se Amira visse as notícias saberia que já se vislumbra o fim do confinamento, a esperança de restituir à cidade alguma da azáfama perdida – mas Amira não perde tempo a ver notícias. As mais importantes acabam sempre por lhe chegar aos ouvidos; as outras são ruído mental que ela não se pode dar ao luxo de ouvir. Ela é ciosa da boa forma do seu cérebro e recusa quaisquer distracções que a prejudiquem. Oferece à sua cabeça uma dieta muito cuidada, sem nada do que ela chama junk food mental. Não que Amira se oponha a ver um ou outro reality show para relaxar, mas não permite que uma enchente de notícias ao minuto, mascaradas de informação importante, lhe contaminem a paz de alma.

Amira continua ao computador, absorta no seu trabalho. A lua já vai alta e Amira não dá sinais de querer parar. O trabalho a partir de casa permite-lhe seguir o seu ritmo natural – trabalhar à noite, quando os seus sentidos estão mais aguçados; comer apenas quando tem fome; descansar precisamente quando o corpo lhe pede. Faz uma hora de exercício ao acordar – seja ele corrida, alongamentos ou outra atividade que o corpo lhe peça. A solidão, essa, já não lhe pesa. Há duas semanas começou a suspeitar; há uma semana soube-o com certeza. O seu filho cresce dentro dela. Amira para de trabalhar e imagina o início de um coração, do tamanho de uma semente de papoila, a bater. Tum-tum, tum-tum, tum-tum. É impossível de ouvir, mas ela imagina claramente o som, tímido, abafado por todas as camadas que o protegem. Tum-tum, tum-tum, tum-tum. Amira não é religiosa, mas dá por si a imaginar bebés a brincar nas núvens, querubins rechonchudos com  asinhas, à espera da sua vez para nascer. Os bebés gatinham, riem-se, pegam em pedaços de núvens e desfazem-nos com os dedinhos trapalhões. Às vezes chega alguém e pega num deles.

– É a tua vez – diz esse alguém, e o bebé é transportado até à sua barriga, desenvolvendo-se a partir de duas células.

A atenção de Amira regressa à tarefa em mãos. Os seus devaneios duram pouco tempo, porque o trabalho é absorvente. Ainda assim, Amira não resiste a imaginar a altura em que esse bebé será maior que ela, em que a sua vida actual se renderá ao seu destino de Mãe. Por um momento vê-se no futuro, quando nada for mais importante que esse novo ser, o centro do seu mundo. O coração de Amira aquece e ela recomeça a trabalhar com energia redobrada.

   

As horas avançam. O relógio de parede, um simples disco branco com dois ponteiros, indica duas, três, quatro horas. Já passa das quatro e meia quando Amira se levanta da secretária e se prepara para dormir. Desliga o computador; arruma uma dúzia de papéis espalhados pela secretária; repõe os lápis na caneca. Põe o resto da sanduíche no lixo e deixa o prato a secar no escorredouro. Lava os dentes com esmero, dedicando o seu tempo a cada quadrante; veste o pijama; usa a retrete antes de ir para a cama. Inesperadamente, chega-lhe às narinas o cheiro a sangue. Pungente, sem margem para dúvidas, um cheiro que cai como um raio naquela noite aveludada. Lá fora, a chuva continua a cair. A escova de dentes, ainda húmida, está no copo de porcelana; da cozinha vem o som das gotas que pingam do prato acabado de lavar. Na quietitude da noite, Amira sente o vazio do seu útero alastrar-se por dentro dela, sufocante, anulando tudo o que a preenchia.

Os edifícios altos alinham-se na rua deserta. A poça de água que reflectia a janela é agora uma mancha negra no pavimento. Não tarda muito, chegarão à rua os joggers matinais, os compradores de pão fresco e outros transeuntes distraídos, e mais um dia começará.

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