Editorial

Jornalismo de outros tempos – De Almada Negreiros à CMTV 
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Damião Cunha Velho

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Esta semana morreram milhares de pessoas num terramoto em Marrocos.

O mesmo aconteceu em 1960 em Marrocos. A forma como as notícias foram dadas pelas televisões e jornais em 1960 e em 2023 é um exemplo paradigmático de como o jornalismo mudou significativamente.

O espaço para a reflexão, para a investigação, praticamente não existe no trabalho jornalístico. O jornalista tem de dar a notícia o mais rápido possível, antes do seu colega do canal ou jornal concorrente. Na televisão, tem de o fazer de forma ininterrupta, a um ritmo infernal, de preferência com alarido, com o único propósito de atrair o maior número possível de telespectadores. A reflexão/reação, apesar de mediada por jornalistas, fica para os especialistas convidados no decurso da notícia, enquanto as imagens desfilam no ecrã, praticamente substituindo-se à narração, ao texto.

Ora, na década de sessenta, não se vivia no espaço sociocultural e tecnológico que os telemóveis conferem, hoje, ao cidadão comum, não-jornalista, na captação e divulgação de imagens in loco, que servem de fonte para os meios de comunicação social. Os jornalistas tinham nessa época que construir as imagens a partir de relatos de testemunhas via telefone na forma de textos elaborados com minúcia. Tão descritivos que a imagem se formava na cabeça do espectador enquanto ouvia ou lia a notícia.

Dito isto, lembrei-me de uma das figuras mais geniais da história da cultura portuguesa: José Almada Negreiros. Escritor de ficção, poesia e teatro, autor da obra-prima “A Invenção do Dia Claro”. Almada Negreiros tinha uma energia eletrizante e um sentido de humor que faziam encher o teatro Villaret aos sábados à tarde. Mas, a profissão que lhe dava um salário regular era a de redator do Diário de Notícias.

Quando aconteceu o terramoto em Agadir, Marrocos, em 1960, tal como agora, morreram milhares de pessoas e não ficou pedra sobre pedra. Num tempo em que não havia repórteres de imagem ou correspondentes jornalistas, Almada Negreiros teve uma visão. Conseguiu visualizar a tragédia a partir de pequenos e parcos relatos e passá-la para o papel em palavras. A verdade é que depois se veio a confirmar ipsis verbis o que Almada Negreiros havia publicado. Os colegas, nunca conseguiram encontrar uma explicação racional para esta perceção extrassensorial de Almada Negreiros.

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Isto para dizer que tendo sido Almada Negreiros uma exceção, os seus pares também tinham, tal como hoje, a imagem como elemento essencial para a construção da notícia.

A imagem, o poder da imagem, sempre foi objeto de interesse jornalístico.

A diferença é que hoje a imagem banalizou-se e a sua credibilidade até pode ser duvidosa. Já antigamente essa imagem tinha de ser um relato fiel da realidade, com texto como assinatura, caso contrário a credibilidade do jornalista caía por terra.

Hoje, isso não acontece porque a pressa tudo justifica quer para o jornalista, quer para o meio de comunicação que publica o seu trabalho. Basta ver a CMTV que põe no ar as imagens mais chocantes que avidamente procura, sem rigor jornalístico ou ética, duas coisas inseparáveis.

É por isso, que o jornalismo já teve melhores dias.

Agora, tem dias!

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