Editorial

Crónicas de Trazer por Casa: Como sobreviver a esta culpa?
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Zita Leal

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Na idade da inocência acreditei que com três Avé Marias e um Pai Nosso todos os pecados me seriam perdoados.

As noites eram dormidas de um sono só, as músicas dos programas de discos pedidos cantarolavam a toda a hora na minha garganta afinadinha, o pecado nem morava ao lado que o senhor prior despachava-o num abrir e fechar de olhos.

Chega a idade de pensar que o mundo poderia ser melhorado se eu ajudasse e toca de embarcar na JEC, na Juventude comunista pronta a lutar por uma terra sem donos e sem fronteiras. Essa história do senhor Salazar dizer “Portugal pode ser se nós quisermos uma grande e próspera Nação“ soava-me quase bem. Eu queria. Eu iria colaborar. Eu não sabia de seios queimados a pontas de cigarro. Eu nunca desconfiei que testículos poderiam ser esmagados. Eu não imaginava que orelhas negras andariam transformadas em porta-chaves nos bolsos de brancos. Eu desconhecia um solário de nome Tarrafal. Mas soube. Nos membros estropiados dos soldados que voltavam de África, nos rostos das mães que ficaram órfãs de filhos, nas noivas que ficaram por casar. E um novo sentimento nasceu em mim. A rapariga crédula, estupidamente cega vivia a ruminar vinganças, a imaginar revoltas, a rasgar credos e confissões. Mas não me culpava desses horrores. Não alegre, não conformada, mas não ré.

Hoje já velha sinto-me mal. Ainda há uma semana ao fazer a cama, retirei alguns “penucos“ da almofada de penas. Aquilo incomodava-me o sono. Como moro num prédio sem elevador e a mobilidade é precária tenho que pedir a alguma filha que me compre uma almofada boa. E do nada surge-me a imagem de um garoto sem abrigo a dormir com a cabecinha numa espécie de tijolo em pleno passeio desfeito. Ainda não me atrevi a pedir outra almofada. Também poderia recorrer a próteses para os joelhos mas a idade não aconselha. “Rás parta a idade!“ E vem-me a televisão mostrar jovens sem pernas nas estradas desse mundo de Alás e de Cristos e de Budas… Jovens que não têm idade para não terem pernas… Os meus dentes estão gastos. Alguns “já eram“. Adeus rojões, adeus bifanas. Pronto, agora mostram no écran bocas sem pão, sedes sem água, crianças sem leite e eu… “Rás parta a guerra “!

Sinto-me culpada destas misérias, não sei porquê mas sinto. Sou ré destes crimes sem definição e sofro e choro e praguejo. Não consigo fazer como a avestruz. “Rás parta“ a jovem que fui vivendo numa utopia Estou farta dela.

1 comentário

  1. Colega, de duas vertentes, a profissão e o escrever,

    Um dia ouvi uma beata, parecer querer dizer que tinha o céu, garantido. Eu disse: desde que nasci, que tenho lugar cativo, no inferno.
    Ela ficou escandalizada.
    No dia (?) O Juiz, decidirá.
    No meu caso, não vai com o Pai Nosso, conteúdo sobre que tenho dúvidas.
    Cada vez entendo menos de religiões.
    An+alfa+beto.
    Leio, o escrito.

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