Editorial

Legalidade, moralidade e decência
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Dina Ferreira

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Temos passado de espanto em espanto na quantidade de casos que são autênticos ataques à decência e que, no entanto, são legais.

Legalidade e moralidade não só não estão ligados, como cada vez mais se afastam, dando azo a um padrão de comportamentos desavergonhados e cada vez mais comuns. Como se roubar, mentir, espoliar fosse normal, ou até desejável na esfera de quem habita o poder.

O problema é de difícil resolução porque quem legisla é quem tem por profissão passear pelos corredores de S. Bento ou Rua Gomes Teixeira, ou por uma das muitas casas de quem, soi disant, deveria cuidar da coisa pública. Mas quem se passeia por essas casas já percebeu, nestes nossos poucos anos de democracia, que há de sair e depois voltar, em transições que entre nós têm sido demasiado pacíficas, no sentido de perpetuarem os vícios que se acumulam nos partidos e nas dinâmicas do poder. E como todos sabemos, e já dizia Lord Acton no século XIX, “o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”.

Aparentemente, não tem sido possível aos representantes da nação resistirem aos cantos das sereias e manterem-se decentes: legislando decentemente, controlando a respetiva esfera de poderes decentemente, governando decentemente. Já não se percebe bem o que é decente, porque, enfim, é legal e, sendo legal, não pode ser assim tão indecente.

Surge um caso como o da antiga administradora da TAP e também secretária de Estado Alexandra Reis com os seus 500 mil euros de indemnização, agarrada à cadeira e a quem é preciso dizer que se vá embora, para percebermos, pelo descaramento, que o fenómeno só pode ser comum naquela classe a quem chamamos “política”.

O português comum, aquele a quem ressoa a voz da consciência porque vive sem largueza, fica indignado. De facto, com os seus 1.361€ de salário médio (dados de fev. 2022), esse mesmo português precisa de 25 anos de dedicação e suor para auferir o mesmo rendimento. E mesmo assim, fica a perder: porque o português tem de gastar o que ganha para alimentar a família, enquanto todas as Alexandras Reis desta vida enriquecem à custa desse pequeno português, cada vez mais pequeno diante do monstro que alegremente o depena.

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Tudo isto só é possível com muita cumplicidade entre todos os que se vão alternando nas cadeiras do poder, servindo-se do país em vez de o servir, compromisso que assumem cada vez com menos consciência ou capacidade.

Permito-me, por fim, referir de novo o último relatório da Transparência Internacional, relativo ao ano de 2021 (e que se pode ler neste link), apontando “falhas no combate à corrupção em Portugal, nomeadamente na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, por deixar de fora do seu âmbito os gabinetes dos principais órgãos políticos e de todos os órgãos de soberania e, também, o Banco de Portugal” e “ignorar, quase por completo, a questão da corrupção política”.

O mais provável é nada acontecer, refiro-me a medidas estruturais, a não ser o rasto do gossip. O gossip parece satisfazer-nos. A alma portuguesa tornou-se pequena.

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