Editorial

Um Melro no Vazio
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Daniel Jorge

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Seguiu o melro com o olhar cansado.

O animal, que o olhava de forma mais atenta, virou-lhe as costas com agilidade e prosseguiu a sua vida aos pulos. Cada pequeno salto remexia as folhas defuntas, e o seu movimento não cessou até desaparecer na negrura da noite.

Agora, somente o vento violava o mutismo que se impunha sobre a natureza. O sujeito, sentado num banco de pedra fria e musgosa, pegou nos seus materiais. Com a tela virada de costas para o caminho que o melro tinha feito, pegou no pincel e nas cores enegrecidas com a falta de luz. Fez do seu olhar algo mais concentrado, e com isso pincelou o que via à sua frente. Mas nem o som leve e rápido que o pincel fazia poderia incomodar o silêncio. E assim adormeceu nele.

Com a ascensão do novo sol, pôde ver o resultado da sua noite com mais clareza. A tela era a perfeita representação da escuridão. No topo, densas ramagens inertes. Em baixo, um solo indescritível e duro. Dos lados, troncos curvos convergiam num centro sem vida. Ainda se podia ver, de costas para quem vê a paisagem, a cor laranja do bico e das patas de um melro mergulhado no desconhecido.

Sentiu-se vazio. Não compreendia o porquê. Cada pensamento vinha com minutos de atraso, e assim ficavam até que outro chegasse. Mas sentia-se vazio. A figura imóvel e traiçoeira do melro transmitia-lhe o nada que seguia um caminho previsível até à perdição do que não se via no meio. As árvores pareciam todas sentir o melro. Cada árvore era o melro, o melro era as árvores. O nada era tudo.

No canto inferior esquerdo da tela escreveu “Um melro no vazio” e a inicial P ao lado. Arrumou tudo, e ia começar a caminhar para fora da floresta quando reparou que já era noite. Olhou para o caminho que o melro tinha percorrido, o espaço que tinha pintado, e viu-se dentro do quadro. No topo, densas ramagens inertes. Em baixo, um sol indescritível e duro. Dos lados, troncos curvos convergiam num centro sem vida. Não se podia ver qualquer rasto do pássaro. Estaria ele mergulhado no desconhecido, ou seria ele próprio o melro? Caminhou para o meio.

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